A mulher no Antigo Testamento: O livro de Gênesis
Publicado na Revista de Letras da Faculdade de filosofia, Ciências e Letras de Assis (vol. 8-9) em 1966.


O presente artigo não pretende ser uma interpretação científica de um texto e, muito menos, capítulo de História Social do povo hebreu, nos seus primórdios. Claro, se ele puder ser uma contribuição historicamente válida, tanto melhor. Mas o objetivo que nos levou a escrevê-lo foi antes a intenção de fixar alguns aspectos importantes na literatura bíblica e chegar ao eventual leitor, menos pelo caminho do intelecto, que pelo da sensibilidade.
A Bíblia nos relata que, mesmo sendo tipicamente patriarcal, a sociedade hebraica tinha a mulher em alta consideração. Como exemplo, podemos dizer que se, aos pais ou parentes mais próximos da moça cabia acertar seu casamento com o pretendente, a ela era dado o direito de ser ouvida.
Quando Abrahão enviou seu servo de confiança com a finalidade, de encontrar esposa para o filho de Isaac, este, chegando a Nahor, na Mesopotâmia, conheceu Rebeca, à beira de um poço. Logo, baseado em sua beleza e bondade, concluiu que “... ela será a mulher que destinou o Eterno para o filho do meu amo” (Gênesis, XXIV, 44).
Segundo o costume de então, “tirou o servo objetos de prata e de ouro, além de vestidos, e deu-os a Rebeca; e frutas deu a seu irmão e mãe”. (Gen. id., 53) Isso tudo não foi o suficiente para que os parentes de Rebeca a entregassem ao enviado que a levaria como esposa para Isaac. “E disseram seu irmão e sua mãe: Fique a donzela conosco ainda um ano ou dez meses, depois ela irá”. (Gen. Id., 55) Como o enviado insistisse. “disseram: chamemos a donzela e ouçamos sua opinião. E chamaram Rebeca dizendo-lhe: irás com esse homem? Ela disse: irei”. (Gen. Id., 57 e 58).  Só então “... tomou o servo a Rebeca e foi-se”. (Gen. Id., 61).
O caso amoroso de Jacó foi bem mais complicado. Raquel e Lea foram, praticamente, vendidas por Labão, seu pai em troca de trabalho de Jacó. É muito conhecido o episódio do amor que Raquel despertou em Jacó e dos sete anos que este se dispôs a servir Labão, em troca de sua mão. “E amou Jacó a Raquel, e disse (a Labão): Servir-te-ei sete anos por Raquel, tua filha menos”. (Gen. XXIX, 18.6)
 Embora o poeta afirme que
 
“Mas não servia ao pai, servia a ela
E a ela só por prêmio pretendia”
(Camões, Luiz de – Obras completas, volume I; Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1946, pág. 193.)
 
Não há dúvida de que aí observamos uma verdadeira transação comercial. Sim, pois após servir vinte anos, Jacó com toda sua prole separa-se do sogro e diz: “Estes são meus vinte anos na tua casa: quatorze te servi por tuas duas filhas, e seis anos por teu gado...”. (Gen XXX, 41.)
Não se creia, entretanto, que as mulheres aceitassem de maneira pacífica essa sua condição de mercadoria. Tanto isso é verdade que, quando Jacó dirigiu-se a suas esposas, perguntando o que achavam de abandonar seu pai e a terra onde tinham vivido até então responderam: “... Ainda temos nós parte ou herança em casa de nosso pão? De certo estranhas fomos consideradas por ele que nos vendeu...”. (Gen. Id., 14 e 15.)  essa observação amarga, essa reclamação de Raquel e de Lea nos leva a crer que, via de regra, a mulher era realmente ouvida antes de ser casada.
 
                A autoridade da mãe
 
Como mãe, era indubitável a autoridade a autoridade que a mulher tinha em casa. Dois episódios citaremos para comprovar o acima exposto: há de início, a celebre passagem em que Isaac, sentindo-se velho, colocou seu primogênito, Esaú, para que saísse caçar e cozinhasse com a caça um manjar, “...traz-me e comerei; para que te bendiga minha alma antes que morra.” (Gen. XXVII. 4.)
Acontece que Rebeca, mãe de Esaú e Jacó, tinha predileção por este e inventou um estratagema para que fosse o menor, o abençoado. “Vai, rogo, ao rebanho, e toma para mim, de lá, duas boas crias de cabras, e farei delas manjares para teu pai, como ele gosta. E trarás a teu pai, e comerá, para te bendiga antes da sua morte”. (Gen. Id., 9 e 10) Como Jacó tentasse objetar “...serei aos seus olhos (de Isaac) como burlador, e trarei sobre mim a maldição e não a benção” (Gen. Id., 12), Rebeca, incisiva, ordenou “...Somente escuta a minha voz, e anda...”.( Gen. Id., 13) A partir de então, Jacó obedeceu a Rebeca em tudo, trouxe-lhes os cabritos e recebeu a bênção reservada ao primogênito.
Além deste texto, bastante significativo há um outro que mostra as ligações do homem, ainda solteiro e casado. Trata-se de quando o enviado de Abrahão trouxe Rebeca para esposa de Isaac. “E a trouxe Isaac à tenda de Sara, sua mãe. E tomou Rebeca e ela foi para ele esposa e a amou, e consolou-se Isaac da morte de sua mãe.” (Gen. XXIV, 67)
Vemos aí dois aspectos: de um lado, o homem que reconhece a autoridade materna, que leva a sua prometida até a tenda de sua mãe, como nos apresenta a simbologia bíblica. De outro, “consolou-se Isaac da morte de sua mãe”, que não deve ser tomada literalmente, mas sim como expressão da ligação que o homem, uma vez casado, deve ter com a esposa ao contrário do solteiro, ligado à mãe. Talvez a Bíblia colocasse essa lição como exemplo pára a solução de problemas entre sogras e noras.
 
A autoridade da esposa
 
A esposa será sempre ouvida. Poderá, às vezes, parecer injusta, mas não deixa de ser a outra metade do cônjuge. Caso impressionante narra-nos a Bíblia com referência a Abraahão, Sara e Hagar. Ora, acontece que Sara era estéril: “E disse Sarai a Abrão: Eis que me tem impedido o Eterno de ter filhos; vem, rogo à minha serva (Hagar), talvez terei filhos dela. E escutou Abrão a voz de Sarai”. (Gen. XVI, 2. – Note-se que, no princípio da narração bíblica os nomes do patriarca e de sua esposa são Abrão e Sarai,. Só depois é que são mudados, por Deus, para Abraão (gen. XVIII, r) e Sara (Gen. XVIII, 15). Quando não for citação textual, usaremos sempre esta segunda nomenclatura). Hagar, porém, engravidando, passou a desprezar sua senhora. Sara, uma vez mais, colocou-se diante de Abrahão e disse ser inadmissível a afronta que recebia. Uma vez mais, também o homem atendeu à sua esposa: “E disse Abrão a Sarai: Eis aqui tua serva em tua mão. Faze-lhe o que achares certo “. (Gen. id., 6.) Hagar foi, então, castigada por Sara.
Mais tarde, após Sara, ela própria, ter dado à luz a Isaac, pretende expulsar de casa Hagar e seu filho Ismael (Gen. XXI, 1 ss) temendo que este, bem mais velho que seu meio-irmão, pudesse “...muito facilmente, depois da morte de Abraaão, tornar-se senhor.” (Josefo, Flávio, História dos Hebreus, cap. 12 §; São Paulo, Editora das Américas, 1958, pág. 97.)
Como Abraão relutasse em expulsar de sua casa seu próprio filho, “...disse Deus a Abraão: ...tudo que o senhor disser Sara escute-a em sua voz; pois tua descendência será por Isaac.” (Gen. XXI, 12 – em hebraico: “Ki B´Itzschak ikarê Icha zera,” geralmente traduzido como “porque em Isaac será chamada a tua semente”.)
Com temor de me estender demasiado nos exemplos de que só uma megera (que na realidade não era) como Sara tinha direito a voz, diante de seu marido, gostaria de relembrar, sob um outro aspecto, episódio já citado anteriormente. Jacó, após ouvir a ordem de Deus, no sentido de que abandonassem as terras de Labão, seu sogro, “mandou... chamar a Raquel e Léa...”. (Gen. XXXI, 4.)
 Ouviu, embora as ordens viessem do próprio Deus.
 
O recato da virgem
 
Se, por um lado, a mulher era ouvida como noiva, como mãe e como esposa, sua palavra devia ser ponderada e oportuna. A moça, principalmente, devia ser recatada e modesta. A Bíblia nos narra, com pinceladas dramáticas, o caso de Diná, irmã de doze varões, filha única de Jacó. O relato bíblico diz que Jacó acampou com toda a sua prole na “cidade de Sechem, que está terra de Canaan, na sua vinda de Padam-Aram.” (Gen. XXXIII, 18.)
Como a cidade tivesse hábitos diferentes daqueles dos hebreus.
“E saiu Diná, filha de Lea, que deu a luz para Jacó, para ver as filhas da terra.” (Gen. XXIV, 1) Para Josefo ela “... foi para ver de que maneira as mulheres daquele país se vestiam”, (Josefo , Flávio – op. cit. cap. VIII, § 58; pág. 142)o que não deixa de ser bastante provável, embora não esteja na letra do texto. Mas o passeio de Diná seria colocado na Bíblia, não houvesse alguma lição que esta nos quisesse, transmitir. Acontece que “... viu-a Sechem, filho de Hamor, o hiveu, príncipe da terra e tomou-a, e deitou-se com ela, e humilhou-a.”(Gen. XXXIV, 2)
A partir de então, desencadeia-se verdadeira tragédia, que nos lembra o teatro grego ou sheakespeareano. “... dois filhos de Jacó, Simão e Levy, irmãos de Diná. Tomaram cada um de sua espada, e vieram sobre a cidade tranqüila e mataram todo macho.” (Gen. id., 25) Jacó temendo a vingança de outros habitantes da região, tratou de mudar-se. Sobre o fim de Diná a Bíblia nada diz, mas a tradição conta que morreu de tristeza. E Simão e Levy, os vingativos (Disseram a Jacó, quando este lamentou o morticínio: “Como prostituta haveriam de tratar a nossa irmã?” Gen. XXXIV, 31) foram amaldiçoados por Jacó em seu leito de morte: “Simão e Levy, instrumento de violência são as armas... Maldito seja seu furor que é forte e sua ira, que é dura.”( Gen. XLIX, 5 e 7) E tudo por quê? Por causa de Diná ter saído. A moça tinha de ser reservada e ter o máximo de cuidado consigo própria. O recato era qualidade essencial. Note-se que, se de um lado a Bíblia condena Simão e Levy, por outro lado não perdoa Diná.
 
A esterilidade das “Grandes Mães”
 
O aspecto mais curioso e de grande importância para a captação do espírito da Bíblia é o que narra a esterilidade das mulheres, inclusive das chamadas “mães do povo”, Sara, Rebeca e Raquel (exceção feita a Lea). O problema da esterilidade começa com Sara: “E Sarai, mulher de Abrão não lhe deu filhos...” (Gen. XVI, 1) como solucionou Sara o problema? Ora, Sara tinha uma serva egípcia de nome Hagar,. Dirigiu-se, pois a Abrahão e disse: “Eis que me tem o Eterno impedido de ter filhos . Vem, rogo, à minha serva, talvez terei filhos dela.” (Gen. id., 2)
Este mesmo proceder podemos verificar em Raquel. Todos haverão de se lembrar de que sete dias após casar-se com Léa, Jacó recebeu como esposa Raquel, por quem teria que trabalhar outros sete anos. (Gen. XXIX, 27 e 28) Ora, acontece que Léa deu à luz quatro varões, enquanto Raquel “não dava filhos...” (Gen. id., 1). Esta, desesperada por não conceber, disse a Jacó “...eis minha escrava Bilá, esteja com ela: e dará à luz sobre os meus joelhos, e terei filhos, também eu, dela”. (Gen. id., 3)
 
Também Rebeca, esposa de Isaac era estéril, dando à luz somente após rogos do casal. (Gen. id., 3)
O drama da mulher sem filhos alcança, porém, sua dramaticidade maior no episódio de Lot e suas filhas. No capítulo XIX de Gênesis, aparece a destruição de Sodoma e Gomorra e a seguir a transformação da mulher de Lot em estátua de sal. (Gen. XIX, 26). De toda a cidade restaram com vida apenas Lot e suas duas filhas. Varões para jovens não havia. O temor de não terem filhos fez com que elas se utilizassem de um estratagema: embebedaram o próprio pai “... e veio a maior, e dormiu com seu pai...” (Gen. id., 33).Não suficiente com isso, “... disse a maior à menor: Eis que dormi ontem à noite com meu pai; fá-lo-emos beber vinho também esta noite e vai, dorme com ele, e faremos viver, de nosso pai, a semente.” (Gen. id., 34) “E conceberam ambas as filhas de Lot, de seu pai”. (Gen. id., 36). Isto é, as jovens aceitaram o preço de ter uma relação incestuosa, contanto que não morressem sem ser mães.
Semelhante a esse é o episódio de Tamar, nora de Judá, (filho de Jacó) que, frustrada em suas relações anteriores, fez-se passar por prostituta, acabando por ser fecundada pelo próprio sogro. (Gen. XXXVII)
Ora, por que esse desespero todo por ser mãe? Por que, a todo instante, a Bíblia nos relata casos de mulheres que tudo fizeram para conceber e dar a luz?
Claro, de um lado está a própria condição feminina, a própria vocação materna. Por outro lado, há problemas de amor próprio e conjugal: problemas de mulheres que querem, através de filhos, reconquistar o marido distanciado – como tantos casos em nossos dias.
Quer nos parecer, entretanto que a razão profunda de tantos casos de esterilidade – ou impossibilidade de conceber por outra circunstância – e a respectiva vontade de dar a luz, em Gênesis tem uma razão didática. Procura a Bíblia nos mostrar que as mulheres tinham consciência das promessas feitas por Deus a Noé (Gen. VII, 17 e IX, 1) e a Abrahão (Gen. XII, 2) e várias vezes repetidas e reforçadas, no sentido de que seus homens seriam semente de um grande povo.
Há aquele trecho, muito belo, que narra quando Deus diz a Abrahão “... Olha para o céu e conta as estrelas, se podes contá-las. E disse-lhe: assim será tua descendência.” (Gen. XV, 5). As mulheres citadas no primeiro livro do Pentateuco, parecem ter tido conhecimento, instintivamente, talvez, daquelas divinas. Queriam, por isso mesmo, ter uma participação na elaboração do povo. Em nome desse seu sentido criativo é que podem, possivelmente, ser perdoadas por suas falhas.
 

Observação: utilizamos como texto a Bíblia em sua edição hebraica; assim sendo, nem sempre as citações textuais correspondem às versões correntes em língua portuguesa. Para efeito de confronto, utilizamos: 1) a tradução do Rabino Meir Masliah Melamed no volume bilíngüe (português-hebraico) intitulado em nossa língua A Lei de Moisés (não há indicações bibliográficas bastante claras, mas o volume foi editado, possivelmente no Rio de Janeiro, em 1962). 2) A Bíblia sagrada, em tradução (do francês) realizada pelo Centro Bíblico Católico de São Paulo – São Paulo, Editora Ave Maria Ltda., 1964