A arte de votar mal
Correio Braziliense


            Sejamos francos. A democracia, como diz meu cardiologista, é como a idade: a alternativa é muito pior.       
            Assim, votar ou não votar, é uma falsa questão. Só se coloca este problema quem não viveu ou já se esqueceu do tempo em que lutamos pelo direito de votar. Votar não deveria ser uma imposição legal, mas uma imposição moral. Não votar significa abrir mão do direito de escolher, de optar entre diferentes concepções e práticas de políticas públicas; e não me venham com histórias de que todos os candidatos para todos os cargos são políticos, e políticos são todos iguais. Embora seja uma atividade que tende a conduzir seu praticante a uma certa, digamos, dissimulação (todo político é um predador, um caçador de votos em tempo integral), há alguns cuja ambição pessoal pode perfeitamente ser compatível com as necessidades de parcela importante da sociedade. E outros, pelo contrário, que almejam tão somente um cargo público para enriquecimento próprio, dos familiares e dos amigos.
Assim, meu ponto de partida é a de que estou falando com pessoas que vão votar. Chateadas, desanimadas, tristes, mas vão votar. Vão votar até porque querem ver se com seu voto ficam menos chateadas, menos tristes e menos desanimadas. Sei que não é fácil pregar o voto em certas circunstâncias, mas, sinceramente, hoje ele é mais necessário do que nunca. Se não ficar entusiasmado com ninguém, vote pelo menos ruim. O que já não é pouco.
Gostaria de falar, particularmente, do Legislativo, esse poder tão exposto, objeto do ódio de tantos cidadãos. Muitos nem percebem que muito do que lá ocorre e é divulgado também acontece em outros poderes da República, na surdina. Longe de mim defender o indefensável, pelo contrário. Não é fácil um dia ser o historiador escolhido para fazer a palestra de abertura dos 180 anos do Parlamento brasileiro e ser apresentado ao público, num dos auditórios do Congresso Nacional, pelo presidente da Câmara dos Deputados (20 de maio de 2003) e alguns meses depois ver esse mesmo congressista envolvido em saques bancários muito suspeitos.
É desanimador. Mas não votar implica em entregar a outros - eventualmente preocupados em manter o legislativo cativo de interesses de poucos -, o privilégio de escolher nossa representação. Pois se trata disso: representação. Para sermos representados temos que saber o que pensa o candidato que se dispõe a nos representar, quais são suas idéias sobre todo tipo de problema que passa pelo Congresso, como o voto aberto para cassação de deputados e senadores, a legalização do aborto, a qualidade (ou a falta dela) do ensino público, a política externa do Brasil, o salário mínimo e a distribuição de renda, por exemplo. Eu costumo enviar um e-mail aos deputados que ajudei a eleger dizendo qual a minha posição a respeito de determinado assunto e que eu gostaria que ele continuasse me representando (se e quando ele deixa de me representar ele deixa de merecer o meu voto; ou ele me representa, ou escolho outro para a tarefa). Ora, a maioria da população (e não só os mais humildes) sequer se lembra em quem votou. Isso, convenhamos, não é a melhor forma de melhorar o Congresso e aperfeiçoar a democracia.
O Congresso está com uma imagem muito ruim, e ela é merecida. Mas não se pode esquecer que deputados e senadores foram eleitos por nós. Será que, com dizem, ele tem a nossa cara? Somos assim? Votar é uma das grandes oportunidades que temos para nos manifestar sobre o assunto.
Na verdade, não acho nem um pouco ruim ter que votar. Pelo contrário, gostaria de votar mais. Não seria bom todo torcedor de futebol pudesse escolher os dirigentes de seus clubes e expulsar aqueles que tornaram times tão amados verdadeiros sacos de pancadas? E técnico da seleção, então? Não nos deixaram votar, viram no que deu?
Falando sério, e voltando ao Legislativo, sou bastante simpático a um sistema distrital misto em que regiões, cidades, bairros poderiam ser representados, não apenas grupos de interesse. A pressão sobre o parlamentar seria maior, sua obrigação de prestar contas, mais clara. Mas enquanto isso não acontece devemos lembrar que votar não é uma atividade que se extingue assim que exercida, mas uma etapa do processo democrático que exige a presença atenta do cidadão durante todo o mandato dos eleitos. Dá mais trabalho, mas se você não fizer isso, não se iluda, ninguém vai fazer por você.


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