Por um judaísmo universal


Escrever sobre o ano novo judaico é um exercício de memória e de reflexão. Volto para minha Sorocaba natal, mãos dadas com minha irmã, roupas de festa, atrás dos meus pais, caminhando até a sinagoga no centro da cidade. Morava perto das oficinas da então Estrada de Ferro Sorocabana, ativo centro de inquietação operária, forte núcleo do Partido Comunista. Acordava com o apito “das seis”, junto com os trabalhadores. Saía para a escola com o “das sete” e voltava quando o “da uma” já estava chamando de volta os ferroviários. Engolia correndo minha comida e descia para a loja do meu pai, que funcionava mais como ponto de encontro de operários e aposentados do que como fonte de renda familiar.
A loja tinha uma área de roupas feitas, onde ficava a enorme escrivaninha do meu pai, e, no fundo, um espaço maior em que eram empilhados colchões de crina, algodão, palha de milho e capim. Em ocasiões especiais, véspera de greves ou comoções importantes, líderes operários vinham reunir-se na loja, sentados em colchões, protegidos dos transeuntes por colchões, usando colchões como mesa.
Eu me recordo, pequeno ainda, espiando aqueles homens tensos e preocupados, falando de proletariado e repressão, paz e luta contra a carestia e por aumento de salários. Tempos depois perguntei ao meu pai como é que ele, apolítico, permitia essas reuniões clandestinas na loja. Ele me respondeu, candidamente, que em algum lugar “eles” tinham que se reunir. Então eu aprendi que judaísmo era também tolerância para com os diferentes.
Aqueles homens me fascinavam, sua voz baixa, aparência grave e postura tensa insinuavam segredos e projetos maravilhosos. Mas eles me atemorizavam também; estavam sempre a conspirar sem sorrir. Quando ousava aproximar-me deles, respondiam com evasivas como se eu fosse um pirralho.
Os aposentados, não. Esses iam, pacientemente, fazendo a minha cabeça. Explicavam que não era certo o operário trabalhar tanto por um salário tão baixo. De início não me convenci. Viviam bem; cada um tinha a sua casa, horta e cachorro; alguns, até papagaio. Eles então me explicavam que constituíam uma categoria rara, uma espécie de elite operária. Mostravam-me os da Estamparia, da Santo Antônio, fábricas têxteis já então em decadência, salários baixo, três turnos, as máquinas que tinham liderado a Revolução Industrial Inglesa, tentando, inutilmente, ganhar a batalha da produtividade. As garotas operárias de catorze, quinze anos, cheiro de fábrica no corpo, no cabelo, nas mãos, cujo beijo tinha o sabor da linha, que roubava a sensibilidade de sua boca.
Por tudo isso, até pelo calo injusto nos lábios da menina, explicava o aposentado, os homens do “quartinho dos colchões” queriam mudar as coisas e para mudar as coisas havia de lutar. Então íamos jogar uma partida de damas enquanto eu ficava com um gosto amargo na boca por aquele mundo que criava, em lugar de gente afetiva e paciente como os aposentados, mulheres com cheiro permanente de algodão e homens cheios de ódio.
À tarde, a visita à banca de jornais para comprar A Gazeta para meu tio. Lembro-me das notícias de pós-Guerra, a descoberta dos campos de concentração nazistas, Auchwitz. Meu tio falava sobre o mundo, sobre os judeus e seu sofrimento, sobre o anti-semitismo. E à noite, já na cama, meus pais revezavam-se na leitura de um conto de Sholem Aleichem, algumas páginas de Singer, uma novela de Mendele ou Davi Pinski narrando as agruras do operariado judeu na Rússia.
A palavra pogrom* sempre.
O choro disfarçado da minha mãe sabendo que, de suas tias e primas - muitas, todas – que haviam ficado na Europa, nenhuma se salvara do Holocausto nazista. O sentimento de insegurança, de não pertinência, o violinista no telhado de Chagall chegando a Sorocaba e flutuando no ar, sem referências.
Ódio à truculência de Hitler, à violência em geral, às perseguições.
Lembro-me, depois, já com sete anos, vendo, assustado, policiais a cavalo atacando operários no pátio da Sorocabana. Chego correndo em casa, sem ar. Relato o pogrom que eu assistira, o fraco massacrado, impotente. Para mim, judaísmo era aquilo, cultura do shtetl** absorvida pelo sotaque caipira da minha terra, o artesão da Europa Oriental sendo o operário de hoje; Moisés, Isaac e Samuel transfigurados em Zé, João e Bastião.
Difícil explicar ao meu pai que com catorze anos meu judaísmo prescindia da religião formal, mas não dispensava as idéias lançadas pelos profetas a favor de uma sociedade mais justa. Mais difícil ainda foi assumir que meus compromissos não podiam ser apenas com o povo judeu, o ritualismo etnocêntrico me oprimia. As lições que eu aprendera deveria tentar transmitir, rompendo a casca como Isaac Deutcher ou Hanna Arendt.
 
*Pogroms eram as perseguições e os massacres contra os judeus realizados na Europa Oriental. O termo, hoje, significa perseguições étnicas.
**Shtetl era a aldeia judaica na Europa Oriental.