Os rolos do Mar Morto
Este texto fez parte da exposição ilustrada sobre os Manuscritos do Mar Morto, promovida pelo estande de Israel, na Bienal Internacional do Livro de São Paulo em 1994. Foi também publicado na Revista Kol News (nº 14), em setembro de 1994

Em co-autoria com Carla Bassanezi Pinsky

I – Corria o ano de 1947. Na região do Mar Morto, perto de um local denominado Qumran, uma ovelha desgarra-se do rebanho. Um jovem pastor, beduíno, sai à sua procura e depara-se com uma caverna que até então não conhecia. Curioso, insinua-se pela entrada estreita, espera seus olhos acostumarem-se com a pouca luz do ambiente e percebe, num canto, altos potes de barro. Dentro deles, rolos de pergaminho com letras que ele não podia compreender...
            Talvez o ano tenha sido 1946 e não 1947. Talvez o pastor não fosse um jovem e a história da ovelha desgarrada, criada apenas para tornar o episódio mais emocionante. Dificilmente vamos saber com exatidão como tudo começou. Mas, o fato é que os rolos foram encontrados, e constituem a mais fascinante descoberta relativa aos tempos bíblicos.
 
II – Nos anos seguintes, foi feita uma verdadeira “caça a rolos”, tanto por profissionais quanto por beduínos. A área, desértica, seca e terrivelmente quente, foi esquadrinhada e os resultados não tardaram a aparecer. Em torno de Qumran, onze cavernas foram encontradas e, em algumas delas, potes com textos. As descobertas mais impressionantes ocorreram nas cavernas 1, 4 e 11. Alguns textos foram encontrados em estado tão perfeito que permitiam imediatamente sua leitura. Em outros casos foi necessário um trabalho lento e especializado, para que os documentos se tornassem legíveis. No total, mais de setecentos escritos foram encontrados. Alguns não continham mais que duas ou três frases. Outros eram cópias. Mas, com exceção do Livro de Ester. Todos os livros bíblicos (do Antigo Testamento) estão representados nestes rolos.
 
III – Mas, afinal qual a importância da descoberta? Antes de mais nada, trata-se do mais antigo registro dos textos bíblicos de que se tem notícia, antecedendo cerca de mil anos a versão completa da Bíblia, anteriormente conhecida. Sabe-se que a comunidade que utilizava estes textos abandonou o local cerca de 68 da E.C. As análises lingüísticas e a avaliação material dos documentos, através de técnica do Carbono 14, comprovam sua idade. Mas, o mais importante talvez seja que, pela primeira vez, conseguia-se escritos de pessoas que viveram no próprio local onde as bases do judaísmo foram estabelecidas e o próprio cristianismo nasceu. Muitos estudiosos acham que se o cristianismo não teve suas origens entre os essênios (a comunidade que produziu os textos do Mar Morto), foi, pelo menos, muito influenciado por esta seita judaica. Esta tese reforça enormemente a idéia da origem judaica do cristianismo.
 
IV – Os essênios constituíam uma das três seitas judaicas da época de II Templo, que incluíam, também, os saduceus (principalmente as famílias aristocráticas e os sacerdotes) e os fariseus (leigos). Preocupados em seguir, rigorosamente, os princípios que consideravam corretos na religião, os essênios opunham-se aos sacerdotes e religiosos ligados ao Tempo de Jerusalém, a quem consideravam corruptos e indolentes. Em meados do século II a.E.C., perseguidos por seus inimigos, os essênios retiraram-se para o deserto, procurando fugir do que acreditavam ser as perversões e as fraquezas do mundo. Instalaram-se na região do Qumran, nas proximidade do Mar Morto, onde viveram cerca de duzentos anos, até a destruição de sua comunidade e a conquista da região pelos romanos.
 
V – Na época em que habitaram Qumran, os essênios procuravam viver de maneira monástica, ascética e comunal. Alteraram o próprio calendário judaico, lunar, com um ano de 354 dias, por outro solar, com 364 dias de duração, mudando, assim, as datas das festas religiosas. Dedicaram-se ao estudo e à interpretação das Escrituras, ao trabalho e à oração. Foi neste período que a chamada “comunidade do Mar Morto” copiou os livros da Bíblia Hebraica, além de outros escritos judaicos. Quando ameaçados pelos romanos, os essênios esconderam seus escritos sagrados em cavernas, quase inacessíveis. Ocultos do mundo por quase dois mil anos, os escritos conseguiram sobreviver ao tempo e, em plena metade do XX, reaparecem para recontar a história.
 
VI – A notícia da descoberta dos documentos criou, prontamente, uma enorme excitação, tanto entre os estudiosos, quanto entre os religiosos.  O alvoroço chegou até a imprensa, que passou a especular sobre o que teria sido encontrado. O fato de apenas um pequeno círculo de especialistas ter tido acesso aos textos, durante décadas, estimulou idéias fantasiosas sobre o teor dos documentos. Hoje, entretanto, as especulações diminuíram. Alguns dos textos estão à disposição de qualquer pessoa que se disponha a visitar o “Santuário do Livro”, no Museu de Israel, em Jerusalém, Outros encontram-se no Museu Rockefeller, na mesma cidade. Há ainda alguns no Museu do Departamento de Antiguidades, de Amã, na Jordânia, e na Biblioteca Nacional, em Paris. Centenas de trabalhos foram escritos sobre o assunto, vários dos quais, de excelente qualidade.
 
VII – Uma grande parte dos manuscritos está em hebraico. Pelo tipo de escrita e pelo ornamento das letras como o dalet, kaf, mem e resh, os especialistas acreditam terem, sido alguns documentos produzidos no começo do século II da a.E.C. outros estão redigidos  em aramaico (que se tornou uma língua oficial do Império Persa, potência hegemônica da região desde o início do séc. VI a.E.C.), e, alguns, até em grego.
            Os estudiosos classificam os manuscritos em três tipos: bíblicos, apócrifos e sectários. Entre os manuscritos bíblicos estão praticamente todos os livros da Bíblia Hebraica (ou Antigo Testamento). A semelhança que muitos destes manuscritos possuem com os textos masoréticos (textos oficiais da Bíblia, canônicos, definidos depois do ano 70 da E.C.) é considerada espantosa. Um bom exemplo disto é o Livro de Isaías, copiado pro volta do ano 100 a.E.C., apenas seis séculos depois que o profeta preferiu suas palavras, e bastante estudado pela seita, como demonstram as costuras e os remendos nos exemplares que chegaram até nós.
 
VIII – Os livros apócrifos foram escritos durante o período do segundo Templo. Não foram incluídas na Bíblia Hebraica, mas são considerados sagrados por algumas tradições cristãs. Como não constavam da lista de textos canônicos, muitas das suas versões originais, em hebraico, desapareceram (algumas traduções foram preservadas por seitas cristãs). As descobertas em Qumran trouxeram à luz estes livros em sua língua original, o hebraico (e alguns em aramaico). O conteúdo de alguns destes textos relaciona-se estreitamente com os relatos bíblicos (como o livro dos Jubileus e Enoque) enquanto outros, como Tobias e Ben Sirá, são “independentes”. Acredita-se que a comunidade de Qumran os considerasse canônicos e os estudasse com afinco.
 
IX – Embora citados por Flávio Josefo, autor que viveu no século I da E.C., os escritos da seita, provavelmente produzidos por volta do ano 100 a.E.C., eram praticamente desconhecidos até 1947. Este material, bastante diversificado, descreve normas, crenças, costumes e vários aspectos da vida comunal dos habitantes de Qumran, ao que tudo indica, bastante piedosos e dedicados à religião. Revela, também, muito sobre a história dos judeus da época (séculos finais do II Templo e início da Era Comum), seus conflitos de idéias e suas lutas de poder. Seu conteúdo inclui leis, decretos, comentários bíblicos, textos litúrgicos, canções, previsões apocalípticas.
            Entre esses escritos, encontram-se textos como “Documento de Damasco”, o “Rolo do templo”, o “Comentário Habakuk”, o “Manual da Disciplina” (ou “A Lei da Comunidade”), “O Rolo de Ação de Graças” e “O Manuscrito da Guerra”.
 
X – O “Rolo do Templo” traz rigorosas interpretações da seita sobre as leis judaicas. Em muitos aspectos diferem das práticas desenvolvidas pela tradição do Templo e são evidentemente diversas das interpretações dadas, mais tarde, pelo judaísmo rabínico. Aborda basicamente cinco aspectos: a construção do ritual de um templo idealizado (a seita não reconhecia a legitimidade do Templo de Jerusalém), a celebração de festas religiosas (com datas diferentes das celebradas por outros grupos judeus), sacrifícios, leis de purificação, e procedimentos a serem seguidos por um rei israelita hipotético (como, por exemplo, a organização de forças armadas contra ataques inimigos).
 
XI – O manuscrito conhecido como “Comentário Habakuk” refere-se ao texto comentado do Livro do Profeta Habakuk, em que o autor, membro da comunidade de Qumran, descreve e interpreta as palavras do profeta, de acordo com acontecimentos contemporâneos testemunhados por seu grupo e suas preocupações mais imediatas. Segundo os essênios, só eles possuíam olhos para ver o que estava de fato escrito nos livros proféticos ou bíblicos, em geral. O manuscrito é significativo, tanto pelo texto com as palavras do profeta (1000 anos anterior ao que se conhecia, antes das descobertas), quanto pelos comentários que alimentam o conhecimento histórico sobre a época.
 
XII – O “Manual da Disciplina”, também conhecido como a “Lei da Comunidade”, descreve as práticas e princípios religiosos a serem seguidos pelos membros da seita, bem como as punições reservadas as infratores. É o primeiro regulamento monástico de que se tem notícia no mundo ocidental. As regras incluem o respeito às leis divinas conhecidas por intermédio de Moisés e dos profetas; a vida na verdade e a repulsa ao mal; a obediência ao calendário da seita; a colocação do conhecimento, das riquezas em função da comunidade; a não-aceitação da autoridade dos sacerdotes e às autoridades superiores. As punições prescritas eram severas, como, por exemplo, um ano de isolamento e a privação de um quarto da ração alimentar.
 
XIII – Aqueles que viviam de acordo com as regras da comunidade eram considerados “Filhos da Luz” que abriga a Verdade, inimigos mortais dos “Filhos da Escuridão”, onde habita a Perversão. Entre os Filhos da Escuridão estariam tanto os sacerdotes e os rivais judeus de Jerusalém, como os inimigos dos países vizinhos e os romanos. O manuscrito reforça a crença na predestinação, sendo que, por um período, fixado por Deus, a Perversão predominaria até a sua destruição final, que anunciaria a Era da Verdade, em uma grande batalha, num tempo bem próximo.
            Os detalhes da preparação para a Batalha Final (inclusive planos, organização militar orações para os vários momentos da batalha) são descritos no rolo “A Guerra entre os Filhos da Luz e os Filhos da Escuridão”. A luta, que duraria 40 anos e contaria com a participação de anjos e demônios, terminaria com a vitória dos Filhos da Luz, os justos, auxiliados pela intervenção divina. As forças do bem terminariam vencendo as forças do mal.
 
XIV – Desde que o prof. Sukenik adquiriu e desvendou os primeiros três rolos encontrados na caverna 1, a comunidade científica investiu muito na região. Foi só em 1949, porém, que a caverna foi identificada pelas autoridades arqueológicas da Jordânia, com o apoio do padre dominicano Roland de Vaux. Entre 1951 e 1956, outras cavernas e numerosos objetos foram encontrados no local, confirmada a datação atribuída, inicialmente, aos documentos. A descoberta das ruínas de Qumran, um complexo de estruturas de pedra de 8.000 metros quadrados, apenas comprovou a existência de uma comunidade já descrita nos documentos encontrados. Tudo leva a crer que, de fato, os rolos eram a biblioteca da comunidade de Qumran e que esta era composta por essênios.
 
XV – A quem pertencem os Rolos do Mar Morto? Aos beduínos que foram os primeiros a despertá-los, após um sono de mil anos? Aos judeus, que neles viram fortalecidos os elementos constitutivos de seu destino comum? Aos cristãos, que talvez tenham nestes documentos as bases históricas e rituais de sua prática religiosa?
            A verdade é que tais preciosidades podem ter guardiões, mas não donos. Os Rolos do Mar Morto, renovando a mensagem do monoteísmo ético que os judeus trouxeram à luz, constituem patrimônio cultural de toda a humanidade.