A escravidão que nunca existiu
O Estado de São Paulo


“A escravidão não foi tudo o que dela se disse, uma vez que se constitui numa relação consensual entre senhores e escravos”. Para justificar tão bizarra afirmação apresentada em recente encontro de acadêmicos, foi dito que os negros que não se revoltavam aceitavam o seu senhor e concordavam com sua condição de escravo.
Tão fantástica constatação, que se insere em corrente historiográfica modernosa em voga em alguns centros universitários, não deixa de trazer algo de novo: a idéia de que toda opressão só ocorre com a concordância do oprimido. Assim, os cristãos teriam concordado com os romanos em enfrentar os leões nas arenas, porque mais importante que suas vidas era a diversão do povo. Os protestantes teriam topado, animadamente, o massacre de São Bartolomeu. Os armênios adoraram a idéia de ser exterminados pelos turcos e os judeus aplaudiram, entusiasticamente, os nazistas em sua demonstração de eficiência macabra. Deixando de lado os “causos” com morte, poderíamos imaginar, levando Nelson Rodrigues ao paroxismo, que todas as mulheres espancadas ao longo da história concordaram com os agressores, assim com as crianças brutalizadas, os velhos abandonados, os miseráveis marginalizados, os povos submetidos e as etnias martirizadas.
Talvez a idéia de escravidão como “relação consensual” advenha da ilusão de que a condição humana pressuponha o livre arbítrio e a livre escolha, e “escolher” a submissão implicaria obter certas vantagens, como as que áulicos e bajuladores baratos obtêm carregando a pasta ou simplesmente girando em volta da luminosidade emanada pelos poderosos de plantão. Assim, a ingenuidade de quem “milita” em gabinetes fechados acredita serem idênticas ou ao menos semelhante à possibilidade de optar de um funcionário público diante da opção de ser conivente com as falcatruas de seu chefe e a condição de escravo de uma fazenda de café diante da perspectiva do trabalho massacrante. Ora, é importante lembrar que, freqüentemente, o escravo era arrancado do seu ambiente natural, humilhado numa travessia oceânica que matava muitos, separado de seus familiares, posto para trabalhar juntamente com inimigos tribais. Não tinha informações sobre o que se passava em sua redondeza, assistia a castigos cruéis contra os rebeldes insubmissos, raramente conseguia constituir família devido ao número de mulheres existentes e à dupla moral dos senhores, e assim por diante.
A revolta por fuga, recusa ao serviço ou mesmo suicídio ocorriam com mais freqüência do que as condições poderiam justificar, o que não significa, necessariamente, que os que não se revoltavam fossem coniventes com a escravidão por obterem eventuais pequenas vantagens dentro do sistema. Ao contrário, até. O sistema escravista era tão atentatório à essência do homem que fazia com que muitos deles se corrompessem, o que é mais um argumento contra a escravidão, não uma quase justificativa de sua existência. Colocando a questão em outras palavras, diria que a existência de escravos que denunciavam seus companheiros, ou de escravos que seduziam seus senhores para obter vantagens materiais, põe a nu menos o caráter individual dos que realizavam tais atos – que nem por isso seriam “consensuais” - , mas a perversidade intrínseca do sistema escravista que propiciava tais situações. É claro que não se pode mais aceitar a idéia de que todos os escravos eram ingênuos ou mesmo de que todos os senhores foram malvados. Não se pode, contudo, negar que a violência maior da escravidão não foram as chibatadas humilhantes a que eram submetidos os negros, nem as violências sexuais, nem os constrangimentos à sua cultura. A maior violência foi a própria existência da escravidão, criando predeterminações que estabeleciam diferenças entre seres necessariamente iguais: todos os senhores eram superiores a qualquer escravo. Pode haver acordos e consensos dessa forma?
É muito importante pesquisar a história do negro no Brasil e, por conseguinte, a escravidão. Temos de banir de nossos manuais escolares besteiras do tipo “o negro nos trouxe a dança e o tempero, o índio participou com a mandioca e a queimada, o resto foram os brancos que fizeram”. Pesquisas relevantes precisam se apoiadas, mesmo quando elas esquadrinham espaços e períodos aparentemente miúdos. Afinal, não se fazem painéis sem se contar com muitos ladrilhos. Dizia um grande historiador francês que trabalho e imaginação são ingredientes fundamentais do bom historiador. No Brasil, a imaginação tem suprido certa falta de trabalho. Mas é preciso que o lapidador de um ladrilho tenha a consciência de que não adianta ampliar seu “pedaço de verdade” para chegar a uma verdade maior. Documentos da fazenda do avô de alguém podem ajudar a explicar, mas não explicam sozinhos muita coisa. É preciso não ir com muita sede ao pote, do contrário algumas boas intenções poderão apenas induzir o leitor desavisado a uma absolvição rápida da escravidão, sob o argumento de que escravistas e escravos não passavam de seres humanos com virtudes e defeitos iguais. Mais um pouco e se poderá chegar à conclusão de que a escravidão nem existiu.