Preconceito e amizade
Folha de S. Paulo


O filosofo Jean-Paul Sartre narra, em seu livro Reflexões sobre o Racismo, a revolta de uma jovem: “Tive brigas insuportáveis com os peleteiros; ele me roubaram, queimaram a pele que eu lhes confiara. Pois bem, eram todos judeus”. “Mas”, prossegue Sartre, “por que optou ela por odiar os judeus mais do que os peleteiros? E por que os judeus ou os peleteiros mais do que tal judeu ou tal peleteiro em particular? Por trazer dentro de si uma predisposição para o anti-semitismo”, conclui.
            A pergunta seguinte se impõe: por que algumas pessoas são anti-semitas? Ou pela experiência, isto é, quando desenvolvem um conceito por meio da prática histórica, ou por terem engendrado uma noção de judeu independentemente da história e, muitas vezes, até contra ela. Ainda para Sartre, “longe de a experiência engendrar a noção de judeu, é esta, ao contrário, que ilumina a experiência: se o judeu não existisse, o anti-semita inventá-lo-ia”.
            Não por acaso, para Hitler e os nazista, os judeus representavam o grande capital e o comunismo, o medievo e a alta burguesia. E, de certo modo, os judeus do século XX já faziam de tudo. Não eram mais um povo-classe.
            Durante a longa Idade Média ocidental, os judeus ocuparam certas atividades que acabaram por caracterizá-los, como comerciantes, arrecadadores de impostos e prestamistas. Era o espaço que lhes restava numa sociedade em que não podiam ser guerreiros, senhores feudais ou sacerdotes e na qual os que permaneceram servos foram totalmente incorporados ao mundo cristão. O número de judeus caiu, do século I ao século XV, de cerca de 7 milhões para 1 milhão no mundo equivalente ao Império Romano do Ocidente.
            Mantiveram sua identidade porque, como comerciantes numa sociedade não-monetária, eram chamados de improdutivos; como judeus num mundo cristão, apareciam como deicidas (assassinos de Cristo) e marginais. Embora necessários historicamente como reserva monetária, eram manipulados pela ideologia dominante, que os integrava pela rejeição, engrenava-os como marginais e os diferenciava, para que não deixassem de existir.
            Com os estertores da Idade Média, os judeus são sistematicamente expulsos de toda a Europa Ocidental – exatamente quando uma nova classe de comerciantes cristãos, legitimados pela Igreja, se desenvolve e prefere não sofrer concorrência – e chamados para a Polônia feudal, para realizar as mesma tarefas exercidas na Europa Ocidental.
            Antes, só na Polônia, depois em todo império czarista, os judeus se sustentaram até a segunda metade do século XIX, quando o acelerado desenvolvimento do capitalismo na Rússia criou alguns poucos ricos e uma imensidão de miseráveis judeus, que viviam da generosidade de seus correligionários e até de cristãos para comer e se vestir.
            Dados de 1898 dão conta de que perto de 20% das famílias judaicas de Varsóvia, Misk, Vilna, Grodno e muitas outras viviam como indigentes. Muitos descendentes desses judeus foram assassinados em campos de concentração nazistas algumas décadas depois.
            O século XIX, tão triste para os judeus russo-poloneses no seu conjunto, provocou, porém, uma ruptura muito benéfica: já se vivia fora do pequeno mundo judaico, já se ia às escolas laicas, já se escrevia em russo e não só em iídiche, já se dialogava com o mundo. Para muitos, a solidariedade maior não era mais só com o grupo, mas com a humanidade. Nem foi outra a razão pela qual tantos líderes e militares revolucionários (como Marx, Trotski, Rosa Luxemburgo) lutaram. Mesmo que hoje não aceitemos muitas de suas idéias não podemos negar sua generosidade.
            Como disse Sartre, se você tem algo contra um peleteiro, por que atacar todos os judeus? Numa época em que as próprias identidades nacionais são questionadas por um mundo cada vez mais próximo, só a desinformação ou o preconceito podem pôr num mesmo saco os obscuros fundamentalistas judeus (esses, sim, endogâmicos, como de resto os fundamentalista islâmicos e cristãos) e cientistas como Einstein e Albert Sabin, cineastas como Spielberg e Woody Allen, escritores como Bashevis Singer e Philip Roth. Se não gosta de como o grande capital atua ou de como os EUA globalizam sua cultura, fale-se mal disso, não do “dinheiro judeu”. Isso nos ofende a todos e não é uma forma justa de dizer as coisas.
            Quando escrevi um livro sobre a escravidão no Brasil, ou quando montei um seminário nacional para discutir o racismo, especialmente contra negros, não o fiz por má consciência nem a saldo de nenhum capital judaico. Não discuto filmes que não vi. Mas acredito em amizade, não sé entre judeus e negros anti-racistas, mas entre todos os que lutam por uma sociedade mais justa.
            Por outro lado, não se reconhece hoje um judaísmo só, mas muitos. Há a identificação nacional, a religiosa, a cultural e até a gastronômica. Há também a identificação de fora para dentro, que vem do preconceito que engendra o judeu continuamente, não lhe permitindo optar por outra identidade. Afinal, como bom bode expiatório, se não existisse o judeu, ele teria de ser inventado. Não é isso que fazem com o negro, no final das contas?