A Igreja e os judeus
O Estado de São Paulo


            A notícia do estabelecimento das relações diplomáticas plenas entre Vaticano e o Estado de Israel tem significado muito mais amplo do que uma simples troca de embaixadores. Atrás de si, a notícia carrega uma leitura da História, uma revisão em práticas políticas e uma nova concepção a respeito da própria origem do cristianismo.
            De fato, o cristianismo, nas suas origens, era, freqüentemente, confundido com o judaísmo. Aquele Deus abstrato e inatingível, que caracterizava ambas as religiões, se contrapunha às divindades materialistas em mármore e granito ou corporificadas pelo próprio imperador romano. Só no decorrer da Idade Média, o cristianismo vai se afastando do judaísmo até chegar a se contrapor a ele de forma radical. Dentro do mundo feudal, que legitimava apenas os guerreiros, os sacerdotes e os camponeses, engendrou-se a figura do judeu como povo-classe, comerciante numa sociedade que não valoriza as trocas, usurário num mundo que se jurava não aceitar o poder do ouro. Integrado pela rejeição, marginalizado para que não deixasse de existir (não se lutava por sua conversão), o judeu, elemento argentário numa sociedade não argentária, era chamado de deicida, o matador de Deus, o assassino de Cristo. Como aceitar, assim um Cristo judeu, um Jesus circuncisado e com barmitzvá feita, um homem que, na sua origem e em suas idéias, fosse um continuador, mesmo que herético, da tradição judaica?
            Por tudo isso é que a Idade Média elaborou a concepção de descontinuidade, de ruptura, entre o judaísmo e o cristianismo, como se este fosse a superação daquele, e aquele a negação deste. Por tudo isso é que o imaginário popular engendrou, naquele período da história, a imagem do judeu diabólico, do anticristo, o mito de que os judeus usavam sangue de garotos cristãos, em vez de vinho, na Páscoa, e envenenavam poços de aldeias para matar os cristãos. Pos isso tantos judeus morreram em perseguições cruéis de famintas e empesteadas multidões, que imaginavam terem os judeus menos baixas durante as epidemias como fruto de “parte com o demônio”, e não como simples resultado do cumprimento de determinações rituais, como tomar banho regularmente e lavar as mãos antes das refeições.
             O fim da Idade Média não trouxe uma imediata modificação de mentalidades relativamente aos judeus. Só com a Revolução Francesa é que se determina o direito universal da cidadania. Entretanto, o anti-semitismo (como tantos outros “antis”, solução fácil de atribuir ao “outro” mais fraco a responsabilidade de problemas internos) continuou existindo, como continuou na cabeça de muita gente a idéia do judeu que domina o mundo por meio das finanças, do petróleo ou até da mídia... Ainda existem cabeças obtusas que juram serem capazes de reconhecer um judeu de longe embora haja entre eles loiros, morenos e negros, altos e baixos, braquicéfalos e dolicocéfalos, narizes aduncos, achatados ou arrebitados.
            Embora setores da Igreja Católica tivessem se manifestado, em várias ocasiões, contra a discriminação de judeus, o Vaticano poucas vezes, e geralmente de maneira morna, tomou sua defesa, mesmo quando foram vítimas de genocídio praticado pelos nazistas. Agora a situação muda. O papa chamou, há pouco tempo, os judeus de “irmãos mais velhos”. Isso significa que admite uma relação de continuidade, e não de ruptura, entre judaísmo e cristianismo. Aceito o fato de que o judeu Jesus desenvolveu seu ideário dentro, e não fora, do judaísmo. Pois, afinal de contas, eram judaicos os ensinamentos básicos do cristianismo e algumas de suas “novidades”, sabe-se agora, eram práticas correntes entre essênios, seita judaica já existente quase 200 anos antes do nascimento de Jesus, e com as quais este, provavelmente, deve ter tido um contato muito íntimo.
            Os Rolos do Mar Morto, descobertos há quase 50 anos, dão um testemunho claro da existência dos essênios e de suas práticas monásticas, muito próximas das desenvolvidas por Jesus e seus apóstolos (vida comunitária e ascética, despreocupação com bens materiais, etc.), o que evidencia para a maioria dos estudiosos e, ao que parece, para o Vaticano, o caráter de continuidade, e não de ruptura entre cristãos e judeus acima assinalado. Também por isso – embora não só por isso – está se dando a atual aproximação entre o Vaticano e Israel, entre católicos e judeus. Cabe a todos que lutam contra a intolerância e o monopólio da verdade apoiar esta aproximação.