Fundamentalismo e modernidade
O Estado de São Paulo


            O mundo, estarrecido, acompanhou a tragédia ocorrida nos EUA: uma senhora brasileira ajudou o marido, palestino, a assassinar a própria filha, Tina, conforme registro sonoro ouvido por milhões de pessoas via rádio e TV. O casal foi condenado à morte e depende agora de delicadas manobras jurídicas para alcançar a “graça” da prisão perpétua. No Brasil, outro palestino é suspeito de ter assassinado a filha, a tiros, num crime apresentado pela imprensa como semelhante ao primeiro.
            Em ambos os casos os assassinos são palestinos. A vítima, a própria filha. O motivo, a “insubmissão” das garotas, que namoravam rapazes desaprovados pelos pais: um negro no caso de Tina, um descendente de alemães no caso da brasileira. E em ambos os casos os pais tentaram encontrar noivos confiáveis, de origem palestina, e não aceitaram a recusa das filhas a se manter fieis à tradição.
            Estes fatos ofereceram um prato cheio aos preconceituosos anti-semitas (os palestinos também são semitas...) que logo generalizaram, apresentado todos os árabes e até todos os muçulmanos como seres primitivos, ao sabor de impulsos animais, vivendo segundo regras inadmissíveis para civilizados prestes a entrar no século 21. Aparecem também as visões pseudo-antropológicas dos que querem “compreender” tudo, justificando a atitude dos assassinos em nome de valores culturais próprios, inacessíveis para nós, ocidentais. Segundo esse antropologismo mambembe, a atitude de um palestino nos EUA deveria ser vista da mesma forma e com o mesmo respeito que os assassinatos rituais na sociedade incaica ou antropofagia nas sociedades tribais no Brasil pré-colombiano.
            Não se trata, claro, da mesma coisa. A civilização não tem mais o caráter tribal e local de há alguns séculos. Algumas conquistas, embora localizadas na sua origem, adquiriram caráter universal. Direitos humanos foram incorporados pelas diferentes culturas de forma diversa, mas fazem parte do patrimônio da humanidade. E o direito básico de cada um é o direto à vida. É pacifico que o fato de um casal propiciar o surgimento de uma vida não o autoriza a interrompê-la quando julgar adequado, mesmo que o filho não esteja agindo de acordo com o que o pai considera correto. Aceitar uma morte anunciada como sinal de “respeito” aos valores culturais dos pais é identificar islamismo com barbárie, o que é uma inverdade e uma ofensa a tudo o que de importante os muçulmanos em geral e os árabes em particular trouxeram e que hoje está incorporado ao patrimônio comum da humanidade, inclusive a tolerância e a capacidade de negociação.
            Uma sociedade moderna deve ser tolerante com qualquer manifestação de fé – o que inclui o respeito a diferentes religiões. Isso não significa, contudo, aceitar a ditadura de uma fé, ou melhor, de um conhecimento revelado (ou apresentado como tal), sobre um conhecimento racional. Muito menos admitir uma violação ao direito de cidadania. A essência da democracia (além de governar por turnos, como dizia Péricles) consiste no direito à livre troca de opiniões e na busca de melhor solução para os problemas. Um saber “revelado” é necessariamente acrítico e autoritário, porque não submetido a um amplo debate democrático.
            A pessoa a quem a verdade se “revelou” acaba assumindo a atitude de pregar a sua verdade como universal, ou mesmo impô-la, se tiver condições políticas para tanto. Vinda da divindade, a verdade é apresentada como indiscutível, fonte única de qualquer visão sobre o mundo real, o que inclui de temas metafísicos a “pequenas” coisas do cotidiano, como o direito de namorar quem se quer.
            Fundamentalismo, contudo, não é privilégio muçulmano. Como há muçulmanos não fundamentalistas, a História registra posturas fundamentalistas entre cristãos e judeus, por exemplo. Queimar mulheres na fogueira por possuírem um “saber” não referendado pela Igreja (as “bruxas”), apedrejar adúlteras até a morte ou enterrar vivas as esposas junto ao cadáver do marido não são exatamente sinais de respeito à vida humana, especialmente à da mulher. O fato é que o preço que as diferentes religiões têm de pagar para serem incorporadas à vida moderna é dar historicidade às suas práticas cotidianas, interagindo com a civilização e suas conquistas. Ou criar Estados nacionais teocráticos, retrógrados e preconceituosos.
            Democracia, liberdade e direitos humanos são conquistas obtidas com muita luta para serem destruídas em nome de visões obscurantistas para as quais só resta o lixo da História.