O Supremo e o lóbulo da orelha


Recente decisão do Supremo Tribunal Federal a respeito de propagação de literatura anti-semita propiciou uma grande celeuma sobre questões importantes como liberdade de expressão, racismo e até o papel que a sociedade espera que nossas Cortes desempenhem. Para alem do tecnicismo, filho bastardo do “saber competente” e esconderijo predileto dos que usam a palavra para encobrir idéias e intenções, alguns argumentos inteligentes apareceram no debate, tanto por parte de certos ministros, como de intelectuais empenhados em exercer e propiciar o exercício da cidadania.
Mesmo assim algumas confusões foram feitas. Lá pelas tantas a discussão deslocou-se para a questão da existência ou não de raças, uns negando-as totalmente, outros reiterando sua existência, por evidentes. Essa discussão não é nova, mas adquiriu coloração especial ao ser discutida com emoção inusitada entre nós.
Afinal, o ser humano pode ou não ser dividido segundo raças, ou sub-raças a que pertence? Os que afirmam sua existência dizem que simplesmente não se pode negar a existência de seres humanos diferentes, uma vez que há negros, há brancos e há amarelos, há altos e baixos, há braquicéfalos e dolicocéfalos. Os que negam a existência de raças lembram que a miscigenação humana tem sido tão profunda e intensa que falar de raças é um erro biológico básico.
Ora, mais uma vez presenciamos uma discussão mal formulada, por isso mal resolvida. A questão não é, evidentemente de Biologia ou de Antropologia física, mas de História. Quando Simone de Beauvoir diz que ninguém nasce mulher, mas se constrói como mulher ela estava exatamente negando que a representação da mulher na sociedade tivesse uma vinculação direta com suas características físicas femininas, primárias ou secundárias, como ausência de pênis e barba, existência de seios, pele mais macia e por aí afora. A autora de Memórias de uma moça bem comportada afirma que a forma como a mulher é percebida tem a ver com a forma pela qual a história construiu a mulher, como um ser inferior, dependente, volúvel, superficial e que isso nenhuma relação tinha com sua genitália. Assim, se existe preconceito contra a mulher ao volante (“perigo constante”, segundo os discriminadores), isso não é determinado por qualquer característica física objetiva, mas por pseudo-características psicológicas elaboradas por parte da sociedade.
A mesma coisa com relação à raça. Que algumas pessoas têm pele mais clara do que outras, isso é evidente. Mas é evidente porque fomos treinados a reparar nisso. Esqueletos de nórdicos e de negros igualmente altos e magros são muito semelhantes. Então por que não separar as pessoas segundo sua estrutura óssea? Ou o formato dos dedos do pé (em Sorocaba se dizia que mulher que tem o segundo artelho mais comprido que o dedão do pé está destinada a mandar no marido)? Ou segundo o lóbulo da orelha (recentemente, em palestra que fiz em Brasília, sugeri que o público observasse se os lóbulos de suas orelhas eram presas ou soltas. Após constatarem que apenas uns 5% da amostragem tinham os lóbulos presos “decretei” que estes constituíam uma “raça” superior. Ou “diferente”. Isso tem tanto valor científico quanto separar as pessoas por cor de pele ou formato dos olhos)?
O fato de os judeus constituírem ou não uma raça tem a ver com estas questões. Pensar os judeus como uma unidade racial é algo tão imbecil que só poderia passar pela cabeça doentia dos nazistas e seus admiradores (e há mais do que o bom senso justificaria) ou por fundamentalistas que ainda acreditam em escolha divina e em continuidade racial. O grande mistério da permanência dos judeus ao longo da história é que eles... não permaneceram. Ao longo do tempo, inúmeros judeus abandonaram sua identidade (por perseguições, por comodidade, por interesse, mas, principalmente, por inércia), estando hoje miscigenados em povos de quase todo o mundo. Por outro lado, houve um processo de judaização de povos não oriundos do Oriente Médio, como cázaros, ucranianos e muitos outros, além de casamentos fora do grupo. Basta andar numa rua de Tel Aviv, ou mesmo nas veredas de um clube como a Hebraica, em São Paulo, para vermos judeus loiros (muito loiros) e morenos (muito morenos), altos e baixos, de nariz adunco, empinado, estreito e largo, olhos claros e escuros, lóbulos de orelha preso, como o meu, ou solto, como o dos meus irmãos. A identidade judaica é, pois, cultural, para alguns nacional, para outros religiosa, nunca racial. No entanto...
No entanto, ao longo do tempo, manifestações anti-semitas tomaram o caráter de perseguição racial, como no tempo do nazismo. Racistas sempre procuraram atribuir características psicológicas a supostos traços biológicos. Embora a alegação fosse a de perseguir os judeus por sua raça (ficção biológica, como já vimos ), atacava-se os judeus historicamente elaborados. É era exatamente isso que nosso Supremo Tribunal estava julgando, a raça como fruto da História Social, não da História Natural.
 Nesse sentido, é claro que a raça existe (pois ela existe na elaboração do autor racista). Nesse sentido, é claro que houve preconceito racial por parte do autor anti-semita. Por meio de sua sentença nosso tribunal maior mostrou que o Direito de que ele fala é uma ciência social, uma forma de conhecimento arraigado na História.
E nem poderia ser diferente.