A globalização que queremos
O Estado de S. Paulo


Leio, estarrecido, que o tempo que os executivos franceses dedicavam ao almoço caiu, na última década, de duas para uma hora por dia. A notícia comemora o fato em nome da globalização e da objetividade. É, o vício econômico contagiou mesmo o mundo. Não sei se o rendimento intelectual de qualquer pessoa pode aumentar quando ele troca as maravilhas da comida francesa e uma boa taça de vinho por uma repelente pasta de carne moída amassada e aquecida (o hambúrguer), regada por uma indigesta mistura de ovo com óleo (a maionese) e um copo de papel encerado cheio de gelo e aquele líquido de cor duvidosa que as donas de casa usavam para desentupir pias. Mesmo supondo, e por absurdo, que as pessoas dobrassem sua capacidade de trabalho, que felicidade pode sentir alguém que troca um charmoso bistrô por uma turbulenta e impessoal lanchonete de fast-food?
Imagino o executivo francês chegando cansado em casa, o estômago revirando: grunhe um boa noite para a mulher, não chega sequer a ver o filho (que não está à sua espera, ocupado em relacionar-se virtualmente com o mundo, via internet), arranca os sapatos e liga a televisão do home theater  que comprou para fugir das agruras do cotidiano. Engole o jantar que sua mulher requentou no microondas nem repara o que comeu, mas olha à sua volta e percebe que seu sacrifício valeu a pena: eletrônicos e eletrodomésticos de última geração o espiam, testemunhas de seu sucesso. Adormece, sentado, e ressona satisfeito. Sacrifica-se pela família “que tem de tudo”. E viva a globalização.
Globalização é, para muitos, apenas um momento da expansão do capitalismo, uma mudança na economia. Para uns desejável, para outros inevitável, é vista como uma fatalidade da natureza, um el niño financeiro. Não é não. A globalização é fruto da ação organizada dos homens, portanto um fenômeno da sociedade e não da natureza. Não é como a erupção de um vulcão, uma onda de calor ou a inundação dos grandes rios, que têm que ver com o mundo da natureza. A globalização, pelo contrário, tem que ver com o mundo dos homens, com a forma pela qual se organizam, extraem riquezas, vendem produtos, fornecem serviços. Tem que ver também com a maneira pela qual criam cultura e a veiculam, se apropriam de valores morais e práticas políticas e os universalizam. A repulsa a assassinos institucionalizados, do tipo Pinochet, encontra eco em todos os países, não só pelo fato de seu regime ter trucidado cidadãos de diferentes nacionalidades, mas porque cada um de nós, como cidadão do mundo, sente-se atingido na própria carne, por atentados contra a humanidade. Se sofremos as agruras da globalização, como desemprego, sobressaltos econômicos de dimensão planetária e até perda de identidade, que ao menos o fenômeno nos permita a universalização das conquistas que as revoluções francesa e americana trouxeram para a humanidade, como os direitos humanos e o direito a buscar a felicidade.
O fato é que o mundo optou pela globalização, o que implica pôr os Estados Unidos, ou o que se imagina que sejam os Estados Unidos, como padrão de referência. Assim, copiamos suas calças jeans, mesmo em regiões tropicais do País; tentamos instituir animadoras de torcida, no futebol, como se nossos torcedores precisassem de estímulo para manifestar-se, sabemos de cor o nome dos personagens das principais séries da tevê americana, generosamente programadas por nossos canais de televisão. São valores que a potência hegemônica transmite como subproduto de sua hegemonia. Melhor seria que, em vez de hambúrgueres, calças de brim grosso, ridículas moçoilas saltitantes e comediazinhas entremeadas de risadas encomendadas, tomássemos emprestado dos americanos sua experiência em fazer eleições a cada exatos quatro anos e, melhor ainda, empossar o eleito (como os assassinar, de vez em quando, é experiência que dispensamos). Fazer com que os chefes militares obedeçam às ordens do presidente civil é algo aparentemente óbvio, mas bastante incomum entre nós, latino-americanos, mas fundamental para as democracias modernas.
Volto a meu ponto central, se a globalização é um processo determinado pela sociedade e não pela natureza (sobre isso espero que nem o mais empedernido economista tenha dúvidas), cabe a cada sociedade particular determinar quais seus aspectos que devem ser incorporados e quais os que precisam ser rejeitados. Não sei muito bem por que os franceses devam abrir mão de sua cozinha, ou os brasileiros de sua música, imolando esses valores culturais no altar do gosto universal. Nem por que tenhamos de consumir sem limite (principalmente os reverenciados importados). Creio, contudo, que o patrimônio cultural da humanidade ganha com a destruição das barreiras alfandegárias culturais, com a superação do chauvinismo, com o encurtamento das distâncias. Basta que usemos as facilidades que o mundo nos oferece para conhecer o Louvre e o Metropolitan, não apenas para comprar na Printemps e na Bloomingdale. E deixemos os franceses almoçar sossegados.